Os mais emocionados ciganos dão tratamento especial à Sara.
Alguns, num rito secreto que acontece à sombra da cripta banhada pela luz espectral das velas, onde está a sua imagem, segredam-lhe nos lábios venturas e desventuras em beijos e carícias.
Isso mesmo. Alguns beijam a boca de Sara, como se beija a uma amante querida. Parecem querer sugar dos lábios da imagem uma enegia fundamental para renovação da sua força, coragem, magia e de seu ânimo. Isto explica o porquê de estar desgastada a pintura do rosto da imagem.
A imagem de Sara é muito antiga, a pintura revela a base do gesso em que está esculpida. O azul e branco da obra sacra não é sempre observado. Anteriormente tinha uma única cor.
Curiosamente, a imagem emana uma energia quase mágica. Parece que de tanto ser depositária da fé e dos carinhos dos ciganos, a imagem de Sara ganha vida e força como se estivesse eletrizada. Funciona como um símbolo mágico e poderoso para os ciganos, e por isso mesmo Santa Sara é o fio condutor da energia do céu e da terra para o povo Rom.
Tocar a imagem já é uma grande benção para aqueles que vão às Saintes-Maries-de-la-Mer, atravessam a pequena Igreja-fotaleza, descem os degraus sob o altar-mor apenas para estar na câmara ardente de tantas velas, onde está Sara.
O que vem acontecendo e deixado muitos ciganos indignados, é a profanação e o desrespeito dos turistas que não acompanham o sentido da peregrinação de Santa Sara.
Numa dessa vezes, um dos ciganos presentes na cripta ofendeu-se de duas moças usando shorts e mini-saia. Pareciam, segundo ele, estarem numa feira de artesanato no centro das praças da cidade. O homem enfureceu-se, bradou e reclamos com todos, sentiu-se ultrajado em sua fé. Tirou o xale que repousava sobre os ombros da sua mulher-cigana e cobriu a imagem de Sara.
Sara parecia desabrochar num sorriso úmido, em meio a quentura das velas. O homem, aliviado, colocou-se diante dela, assim meio que cabisbaixo e reflexivo, porém com uma dignidade que cintilava.
A turba aos poucos, foi percebendo a gravidade do erro, a indiferença diante do sentimento de fé dos ciganos. Um a um foram se colocando ao redor do homem para vê-lo beijar a fronte e a boca de Sara, reverenciando a Mãe-mulher, aquela que dá a luz, e consegue entre dias e noites conduzir-lhe o sono, apenas com um leve toque de mão nos cabelos.
Por causa do gesto de beijar os lábios de Sara e da maneira muito íntima com que os ciganos se referem a ela, alguns historiadores e não-ciganos resolveram radicalizar em suas interpretações. Sara, para estas pessoas é apenas um ícone, um símbolo utilizado para a magia e outros rituais dos ciganos, inclusive o de acasalamento e fertilização das mulheres. Porém calam os ciganos sobre o assunto e gozam do benefício da dúvida.
Sara é uma Santa católica embora a Igreja francesa a tenha como uma Santa de culto regional. Se viveu ou não com os ciganos, isto é o que pouco importa para os que hoje caminham sobre a Terra. Sara é imagem da mãe que desejam amar e cultuar. Tão poderosa e tão humana que parece dialogar com eles em suas dificuldades, operando inúmeros milagres, frutos unicamente de uma fé muito bem solidificada.
A imagem de Sara ganhava vida, porque os ciganos e devotos lhe emprestavam vida. É assim que acontece quando queremos animar um objeto. Somos nós humanos que damos vida e enegia aos seres inanimados, transformando-os em verdadeiros objetos de poder e talismãs. Por isso, muitas imagens choram. A transformação da energia humana se dá intensamente, enegizando-a. A este feito se referem os populares e devotos, como já tive a oportunidade de ouvir: A imagem de Sara é um talismã carregado de poder e energia, por isso os milagres se operam de tal forma que parecem inacreditáveis.
As vibrações benéficas da imagem de Santa Sara Kali emanam pelo ambiente e podem ser sentidas pelos presentes.
Ela é a síntese da enegia sutilíssima de gerações e gerações de ciganos, vindos das mais diversas partes do mundo para compartilhar com ela os seus segredos, alegrias e tristezas, buscar conforto e força para viver a vida.
Esta relaçào dos ciganos com Sara nada tem a ver com os habituais cultos católicos de devoção aos demais santos. Como já disse, trata-se de uma relação muito particular com o Mito de Santa Sara Kali. Se os demais fiéis oram em silêncio, os ciganos não fazem segredo de suas preces mais calorosas. Jamais nos verão calados diante das pessoas, porque queremos mais intimidade com o nosso protetor espiritual, seja ele representado pelo símbolo que for.
Mais que a nossa consideração exige, queremos abraçar este símbolo, beijar-lhe o rosto, a boca, demonstrar o quanto somos quase iguais. Esta é a verdadeira relação que os ciganos conseguem ter com Santa Sara Kali. Fazer-lhe companhia na interminável vigília da madrugada do dia 24 de maio, numa cripta iluminada fundamentalmente pela luz das velas, que aquecem o ambiente de forma quase insuportável, é o nosso sacrifício, a nossa homenagem, a nossa oportunidade de estar mais à vontade com a Mãe.
E é mesmo verdade que os padres deixam de lado as manifestações exageradas dos ciganos. Acho mesmo que eles nunca observaram a expressão da imagem de Santa Sara, por que seriam capazes de impedir o culto e principalmente a vigília dos ciganos.
Ou ainda melhor: entender o que se passava ali e tornarem-se encantados coma magia maravilhosamente sutil e poderosa dos ciganos, o que justificaria o rompimento dos laços de formalidade da instituição que representam. É melhor não se envolver. Qualquer intransigência afastaria o povo das estradas do Catolicismo, eles não hesitariam em levar a imagem de Santa Sara dali, só para reverenciá-la em outro lugar de paz e aconchego.
(Transcrito do Livro "Os mistérios de Santa Sara Kali - Sibyla Rudana)
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